quinta-feira, 30 de agosto de 2012

CALVINISMO E JANSENISMO GRANDES ESTRUTURAS DOUTRINAIS - A essência e a existência

CALVINISMO E JANSENISMO


GRANDES ESTRUTURAS DOUTRINAIS

André Gounelle

A essência e a existência

Qual é a essência do calvinismo e do jansenismo?

Em 1903, em um artigo que marcou época*, Ernst Troeltsch magistralmente demonstrou que quando se tenta definir a essência dum fenômeno ou dum movimento histórico, por mais erudição e perspicácia que se empregue, é inevitável a tendência para o contestável, arbitrário e subjetivo. Qualquer método, por mais rigoroso, não permite escapar de aproximações, simplificações e até mesmo deformações. É o que facilmente se verifica nas nebulosas indefinições, nas polimorfias e nas fronteiras avaliativas que marcam o calvinismo, e talvez mais ainda, o jansenismo. Fato é que as melhores definições possíveis podem conter defeitos. Segundo Max Weber, citado por Lucien Goldmann, as essências ou os tipos não coincidem exatamente com a realidade concreta. Não existe calvinismo nem jansenismo em estado puro.

Nesse caso, a dificuldade aumenta tendo em vista o fato de que ambos negam energicamente possuírem essência própria e se distinguirem por traços específicos. De cada uma de per si rejeita, sequer querem ser apresentado, como escola teológica, corrente espiritual, partido eclesiástico, ou “uma opinião a ser provada”, dentre as outras. Propõem-se apenas a encarnar o cristianismo na verdade e na autenticidade deste, sem adição ou (im)precisões complementares. Os calvinistas e jansenistas recusam os qualificativos que lhes são atribuídos; declaram ensinar que não praticam outra coisa senão o Evangelho comum a todos os cristãos. A universalidade cristã deles de princípio se reveste de identidade confessional específica tão-somente por causa das deformações que alguns impõem, respectivamente, à mensagem evangélica e ao ensino católico. Só as flagrantes aberrações dos seus adversários que contam, e essas dão a estes a fisionomia que justifica conferir-lhes o rótulo. De certa maneira, a existência contradiz a essência de ambos. Melhor dizendo, eles existem, paradoxalmente, contra a sua vontade, contra a sua profunda natureza. Existem devido à crise que se instala e exige que eles se agitem para manter o cristianismo dentro da sua cristandade. O calvinismo e o jansenismo não querem ser um ramo do cristianismo, mas o cristianismo “tout court” (em termos, resumido, conciso...); e não se trata aqui de literalmente de “tão curto”, tão mutilado, por exemplo, das suas exigências, nem também tão alongado ou mesclado como essas misturas de café que mantendo a aparência de café, não trazem mais a substância do verdadeiro café. “Tout court”, “em termos”, por que a eles próprios se lhes conferem a doutrina pura ou a espiritualidade específica que acaba sendo algo capaz de minar deles o que tem de mais profundo: a consciência de que a essência deles não é mais do que a essência ou identidade cristã, de que não passam das únicas testemunhas e dos únicos defensores do Evangelho em sua pureza e sua radicalidade.

Para esboçar esta perigosa e delicada comparação entre dois movimentos que têm por ambição e projeto nada menos do que não se distinguir, mas se confundir com o cristianismo em geral, restrinjo-me a dois livros emblemáticos, a saber, as “Institutas da Religião Cristã” de Calvino e o “Augustinus” de Jansênio, embora esteja consciente do fato de que o calvinismo não está tão reduzido às “Institutas” assim como o jansenismo ao “Augustinus”. Ambos os livros têm diferenças formais importantes; penso que não estou sendo parcial ou simpatizante por achar que as Institutas têm mais estilo e inspiração do que o “Augustinus”, o qual a sua aplicação curta é mais conhecida do que sua leitura. Em qualquer caso, eles têm em comum não serem, é claro, os únicos escritos de seus autores, mas o livro da vida dos seus respectivos escritores. De 1536 a 1564, Calvino não deixou de retomar às Institutas, complementando-as, redesenhando-as ou mesmo corrigindo-as, mediante sucessivas edições (os últimas apresentadas postumamente), um pouco como Montaigne em relação aos seus “Ensaios”. No que se refere a Jansênio, durante vinte e dois anos, ele escreveu, desenvolveu com paciência e perseverança, o “Augustinus”, que não apareceu senão uns poucos meses depois de sua morte, como se a realização deste trabalho marcasse o fim de uma vida, tendo com ele alcançado a sua meta e missão. Muitas coisas separam o Reformador de Genebra do Bispo de Ypres. No entanto, um e outro são grandes leitores de Santo Agostinho, a quem Calvino citou mais de três mil vezes nas “Institutas” e de quem Jansênio quis ser o fiel intérprete. Mais e melhor do que qualquer real ou alegada influência do um sobre o outro, é esta dependência comum que explica a existência de certa quantidade de proximidades e parentesco entre suas obras. Em geral, em uma abordagem tipológica do caráter inevitavelmente aproximativo e simplificador, podemos dizer que estas duas obras expõem e defendem um entendimento radical da revelação e da graça, e radical aqui significa a exclusão de qualquer outro elemento. Só Deus sabe como falar de Deus; nenhuma fonte complementar permite o saber ou o compreender divino; fora da revelação não há nada senão erros e escuridão. Só Deus realizou a salvação, não há mérito nenhum, nenhum esforço da nossa parte ajuda, porque além da graça, não há nada que não seja pecado.

Vejamos dois pontos a seguir.

A RADICALIDADE DA REVELAÇÃO

Começo pela revelação. Todas as teologias cristãs, incluindo as mais racionalistas e mais humanistas, propõem-se basear na revelação divina. Conhecemos Deus apenas porque Ele se manifesta, intervém, fala e age na história humana. Se continuasse a ser passivo, ocioso e silencioso, não teríamos nenhum meio para descobri-Lo; não poderíamos dizer nada. Ele nos seria absconso e continuaria a ser desconhecido de nós, tal aquela divindade apresentada de acordo com o capítulo 17 do livro dos Atos dos Apóstolos, a quem os atenienses tinham erigido um altar. A teologia cristã depende de um ato do falar que vêm de Deus, cuja iniciativa é d’Ele.

O calvinismo e o jansenismo se mostram, aqui, radicais na concentração na revelação nas Escrituras Sagradas e se recusam a procurá-la noutro lugar. De certo que Deus se manifesta, na natureza, na alma ou no coração humano. Isso é sensível, mas, haverá um momento, em que Ele realmente se nos dará a conhecer sobre Ele mesmo. A razão e a intuição, a filosofia ou a experiência fazem-nos descobrir um sem numero de coisas corretas acerca do mundo; em contrapartida, não trazem suficiente o conhecimento autônomo, ou mesmo auxiliar e complementar, sobre Deus. Não se trata de desqualificá-los completamente, ainda mais em termos de religião. Pode e deve servir de instrumentos, para compreender ou para interpretar precisamente os escritos revelados. No entanto, não constitui em fonte independente, tampouco em instância crítica. Têm valor apenas se forem subordinados totalmente e inteiramente sujeitos aos documentos da revelação.

Assim, nos primeiros capítulos do livro 2 do “Augustinus”, Jansênio explicou que a teologia se baseia na memória, autoridade e tradição. Ele deriva isso por citações, não por raciocínio. A referência a seguir prevalece em relação a isso visto que em seguida apresenta argumentos mais fortes. A teologia deve deixar de lado sutilezas da escolástica que decorrem do pelagianismo e são permeadas de pensamentos metafísicos aristotélicos que a impregna de erros. Para Calvino, o ser humano tem um conhecimento de Deus "naturalmente enraizado no seu espírito" e "o poder de Deus cintila tanto na criação quanto no contínuo governo providencial do mundo...*. Porém, o pecado sufoca e corrompe o conhecimento de Deus e os desejos de nossa natureza. Fazem-nos cegos para que não discirnamos ou deficientes visuais a ponto de discernirmos apenas em penumbra da claridade do pleno dia. É por isso que Deus nos tem dado a Escritura por "guia e mestra". Ela nos fornece o "autêntico" registro da verdade divina. "Ninguém pode ter ao menos um pequeno gosto pela a sã doutrina”, escreve Calvino, “... a compreensão humana ...que de forma nenhuma pode chegar a Deus", a menos que ingresse na "escola da sagrada Escritura". A Bíblia ensina-nos o que é Deus e o que nós somos. É a única base que temos para toda a nossa teologia, não tem outra fonte, e é colocada sobre qualquer outra referência e norma.

Isso não significa que a fé é reduzida a um intelectualismo escriturístico, e o crente necessite apenas do estudo das Escrituras. Ele é necessário, mas não é o suficiente. Para o encontro com o Deus vivo, deve ter algo mais: a sua presença ativa nas nossas vidas, o que Calvino chamava de “testemunho interno do Espírito*. Jansênio falava de "caridade flamejante" que "purifica e ilumina o coração do homem e o faz penetrar nos segredos de Deus contido nas Sagradas Escrituras"*. Assim, a chama da caridade e a luz do conhecimento mutuamente "se excitam e se engendram" de molde a levar a alma à plenitude da fé. Para retomar as categorias do calvinismo escolástico*, as Escrituras se nos mostra intelectualmente como Verbum Dei, a fala de Deus, mas não se faz percebida existencialmente como Vox Dei, voz de Deus. Para ouvir e acolher a sua fala, o verbum, o que também se encontra na Bíblia este deve ser conjugado com a vox que se faz ouvir pelo Espírito. O verbum sem a vox não altera e nem transforma; ele pode muito bem fazer-nos doutores, e em ciência, "frívolos e inúteis", escreve Jansênio, duas palavras que Calvino emprega também, mas não em crentes, e tampouco em verdadeiros teólogos. Por outro lado, referir-se à vox independentemente do verbum rebaixa-a a uma espécie de iluminacionismo que confunde emoções e intuições com revelação. Deus é real e é vivo: real, por que é conhecido pelas Escrituras; vivo quando se faz conhecido ao coração. A piedade fecunda o estudo do texto da revelação e o estudo do texto nutre a piedade. Se um dos dois elementos falha, a teologia se desvirtua.

Ao lado dessa semelhança estrutural entre Calvino e Jansênio, há uma diferença substancial. Para o Reformador de Genebra, as Escrituras que se revestem autoridade são tão-somente as do Antigo e Novo Testamento. Para o bispo de Ypres, incluem-se nelas também os Padres da Igreja, e se estendem à Tradição. Há que se prevenir, aqui, as abusivas e caricaturais simplificações que se fizeram correntes nas controvérsias entre católicos e protestantes. Calvino não nega o valor teológico e o interesse espiritual da tradição*. Ele refere-se a ela abundantemente, e diz que não se deve afastar dela, senão após intensa reflexão, acercando-se de muitos pareceres, quando então boas e sólidas razões nos forçarem a isso. Caso contrário ela não deve ser desprezada, nem negligenciada. Ele a vê útil como auxiliar da revelação, e um comentário valioso para a compreensão do ensino bíblico. No entanto, ela não está habilitada a determinar o significado da Palavra. Devemos sempre confrontar a interpretação que ela nos propõe com o texto bíblico; a exegese examina-a, avalia-a; confirmando-a ou refutando-a. Por seu turno, Jansênio não coloca os Padres no mesmo plano que a Bíblia. Ele afirmava claramente a superioridade e preeminência desta. Mas por vezes tende a dar aos escritos de Santo Agostinho autoridade comparável a da Bíblia, ele chega a dizer que não seria inferior à "primeira depois dos escritos canônicos" e acreditava que ele tenha aprendido de São Paulo sua doutrina. Jansênio não defendia a primazia da Bíblia sobre a tradição. No entanto, considerava que a tradição indica o significado exato dos escritos bíblicos e a Igreja decide a sua justa interpretação. Isso está na linha assinalada pelo Concílio de Trento * que decretou:

“Ninguém, confiando em sua própria sabedoria, se atreva a interpretar a Sagrada Escritura em coisas pertencentes à fé e aos costumes que visam a propagação da doutrina Cristã, violando a Sagrada Escritura para apoiar suas opiniões, contra o sentido que lhe foi dado pela Santa Amada Igreja Católica, à qual é de exclusividade determinar o verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Letras; nem tampouco contra o unânime consentimento dos santos Padres”.

Esta formulação contrasta-se com a Confissão Reformada de La Rochelle* (1559-1571), escrita a partir de um projeto Calvino, que diz:

“Nem antiguidade, nem costumes, nem a multidão, nem a sabedoria, nem os julgamentos, nem os acórdãos, nem éditos, nem decretos, nem concílios, nem as visões e milagres, devem ser opostos… à Escritura Sagrada… pelo contrário todas as coisas devem ser examinadas, reguladas e reformadas de acordo com ela".

Em 1688, o genebrino Francisco Turrentino* assim comentou:

"deve ser grande a autoridade [dos ensinos] da Igreja…; continua a ser, contudo, inferior à autoridade da Escritura. Esta a regra, aquela a coisa regrada… A esta se faz necessário dar fé diretamente e absolutamente; aquela deve ser julgada e crida na medida em que esteja de acordo com a Palavra [bíblica] “.

À luz dessas citações, pode-se dizer que Calvino representa efetivamente a maneira protestante, e Jansênio a católica, de articular a Bíblia com a tradição. A sua proximidade não diminui nem atenua a diferença confessional que os separa.

A RADICALIDADE DA GRAÇA

Após a revelação e a Escritura, passa-se para o segundo ponto que trata da graça e da salvação. Todas as teologias cristãs vêem a salvação como obra de Deus, como dom do seu amor. O homem não pode conseguir nada totalmente sozinho; livrar-se de seus pecados por suas próprias forças; limpar-se de sua culpa por sua piedade ou suas virtudes. Ele precisa de Cristo. Sobre este ponto, o acordo é quase geral. O debate se centralizará nas condições as quais Deus nos concede a sua graça: Ele pede uma participação ou uma contribuição pelo ser humano, exige que ele colabore com sua salvação com alguns méritos ou o salva livre e totalmente, sem qualquer concurso de sua parte? Para usar uma imagem tomada emprestado de um amigo hinduísta (e o Hinduísmo tem lá também suas controvérsias sobre a graça): a situação do crente é comparável a de um gatinho que a sua mãe agarra pelo pescoço com os dentes para livrá-lo do perigo que o ameaça, ou é a de um macaquinho que deve se agarrar aos ombros de sua mãe enquanto ela se afasta do perigo? A esta questão, crucial para o desencadeamento da Reforma protestante, o calvinismo (sobre este ponto em pleno acordo com o luteranismo) e a doutrina jansenista dão uma resposta radical; somos salvos sola gratia, com a exclusão de qualquer cooperação humana. Não só a fraqueza inerente do ser humano, mas também o domínio do pecado, que nos corrompe, sem exceção, e totalmente, nos tornam incapazes de, por nós, pensarmos alguma coisa para a nossa salvação: tudo deve vir de Deus. Como salienta Pascal em seu “Mistério de Jesus”, Cristo opera a salvação dos seus discípulos enquanto eles estão dormindo, enfatizando a passividade humana. Ele opera a nossa conversão, em prol de nossa salvação, sendo trabalho d’Ele, com Ele se completa e realiza, de acordo com uma expressão de Lutero, "em nós e sem nós *.

Trata-se de temas claramente agostinianos. Em seu “Tratado Sobre a Predestinação”, de 1566, Calvino escreve: “Quanto a Santo Agostinho, ele está de pleno acordo com tudo o que é possível fazer para se ter uma confissão a respeito da matéria, seria para mim suficiente que a compusesse com testemunhos extraídos dos seus livros”. Calvino lê tão cuidadosamente Lutero que, recorda-se, antes de sua ruptura com Roma, pertencia à ordem dos agostinianos. Por seu lado, Jansênio, o próprio título de seu livro o indica efetivamente, propõe-se apenas expor a doutrina do bispo de Hipona. Importa, no entanto, sublinhar, que numerosos teólogos de grande influência marcados por forte agostinianismo desenvolvem temas semelhantes. Isso não traduz afinidade específica entre Calvino e Jansênio, mas o retorno a uma fonte e orientações largamente compartilhadas no cristianismo ocidental, nem tanto como através de Agostinho, mas estes temas enraízam-se diretamente nos textos apostolo Paulo. Sempre encontrando resistências, porque contradizem lógicas fortes e invertem o orgulho humano. Hoje isso tem sido exposto freqüentemente de modo suavizado, o que não ocorre nem com Calvino nem com Jansênio.

Há, no entanto, desacordos, que não se referem tanto ao arcabouço global de certos elementos desta estrutura, mas à maneira como a graça age. Na avaliação que ele fez em 1620 nos cânones do sínodo reformado ocorrido no ano precedente em Dordrecht, Jansênio assinala a divergência mais importante. Trata-se da famosa questão da certeza salvação e da inamissibilidade da graça. Para o calvinismo, a doutrina da predestinação cria uma tranqüilidade e uma certeza internas totais. Com efeito, declara o Cânon XI de Dordrecht,

“Exatamente como o próprio Deus é sumamente sábio, imutável, onisciente, e Todo-Poderoso, deste modo a eleição feita por ele não pode ser nem suspensa, nem alterada, revogada, ou anulada; nem seus escolhidos podem ser lançados fora, ou seu número ser reduzido”.

O crente sabe que dado que foi eleito, escolhido, a sua salvação se efetivará, apesar das suas insuficiências e dúvidas eventuais. No século dezenove, o pastor calvinista César Malan dizia a seus paroquianos: “é ofender a Deus implorar-Lhe por uma salvação que já foi realizada”. Mais recentemente, o novelista protestante André Chamson conta que um dia, ao confessar à sua avó muito piedosa que tinha perdido a fé, em vez dela se desolar, como era de se esperar, ela lhe respondeu: “Isso não tem nenhuma importância, Deus saberá reencontrá-lo”. Desde o dia em que provo a fé, e sinto na minha vida a graça, estas jamais me abandonarão, mesmo quando creio desaparecerem ou serem destruídas. Pelo contrário, para o jansenismo, a liberdade soberana de Deus implica que Ele pode retirar a graça que um dia atribuiu. Também, não se pode nunca ter a certeza de sua salvação e é necessário sempre e incessantemente solicitar de modo que se lhe conceda. Não digo que qualquer reformado seja desprovido de angústia e que pelo contrário, esta aflige os jansenistas, o que seria falso. Mas pode-se pensar que a doutrina da predestinação, como os reformados a compreendem, tende a abolir a angústia existencial, enquanto que no jansenismo, ela antes a favoreceria. Para o calvinismo, sua salvação é um negócio que Deus governa do qual não tem com que se incomodar. Para o jansenismo, neste ponto mais próximo da sensibilidade luterana, salvação é um negócio que Deus governa a cada instante e que por conseguinte nunca é adquirida. Esta diferença teológica provoca evidentemente espiritualidades diferentes, mais serena em uns, mais trágica em outros, a primeira marca o estilo mais reformado, a segunda o mais fundamentalmente católico. Ai também, a proximidade não apaga a diferença confessional.

No entanto, podemos argüir se esta questão, à primeiro vista acessória, da inamissibilidade da graça não se refere a uma diferença mais profunda que lida com natureza ou da essência da graça. Para os protestantes, pelo menos em princípio, "graça" refere-se à palavra de Deus que para mim significa o meu perdão e a minha salvação. Esta palavra não altera, em qualquer caso, num primeiro momento, o meu ser. Ela transformou a minha situação, no sentido que Deus decidiu não levar em conta o meu pecado, mas não eliminá-lo. A palavra que me transmite graça não me faz justo, ela me declara justo*. O crente, de acordo com a expressão de Lutero, é "simul justus et peccator”. Então, num segundo momento, será o processo de santificação, que via mudar o meu ser. No Catolicismo, a graça evoca o pouco do poder divino que está em mim, que me permeia e faz-me tornar em outro. A justificação não é um ato declaratório e, posteriormente, seguem as conseqüências ontológicas; tem o caráter essencialmente ontológico. Além disso, o assunto que trata do justo que compromete a graça e que causa a queda em pecado tem sua pertinência. Ele tem menos na perspectiva protestante: Deus não se restringe sua ação à palavra que declara, e a justiça continua sempre mesmo quando somos pecadores. No entanto, os calvinistas usam "graça" tanto para a justificação e quanto para a santificação, embaralha as coisas e impede que se distingam nos textos os sentidos do termo que se utilizam distinta e claramente os protestantes ou os católicos.

OUTROS TEMAS

Gostaria de para terminar assinalar rapidamente dois outros temas que uma comparação entre as Institutas e o Augustinus não põe apenas em destaque, mas ao mesmo tempo aproximam e separam profundamente o calvinismo e o jansenismo.

O primeiro tema diz respeito ao sacramento. Aqui, como mostra Pascal no capitulo dezesseis das suas Provinciais, a oposição é radical. Para o jansenismo, na linha Concilio de Trento, o sacramento efetua, opera a presença Cristo, a hóstia é o corpo de Cristo. Para os reformados, o pão e o vinho assinalam esta presença, não a conferem, mas, por um sinal sensível, fazem-na percebida na comunhão outros fiéis. A tradição reformada, que neste ponto se separa de Calvino e herda mais de Zwinglio, não se defende a freqüente comunhão, mas por razões muito diferentes de Arnauld. Para Arnauld, importa preparar-se bastante para a comunhão porque há o coroamento, o ponto que culmina a vida cristã, aonde Cristo se dá a nós. Não é necessário, por conseguinte tomá-lo demasiado freqüente e inconsideradamente, sem purificação suficiente para tornar-se digno da vinda substancial de Deus a nós. Para os reformados, a comunhão representa um meio pedagógico, um apoio de que temos necessidade devido à nossa fraqueza humana. Não é necessário abusar deste instrumento de modo a que não se embote e deixe de operacional. Assim como a celebração de uma festa nacional ajuda o sentimento de unidade dum povo, mas que não preencheria esta função se tivesse lugar toda semana, do mesmo modo o sacramento, tomado demasiado freqüentemente, perde do seu efeito; não testemunha mais com a mesma intensidade da presença Cristo em nós. A escassez relativa da prática sacramental enraíza-se numa lógica fundamentalmente católica e de outra forma numa atitude tipicamente reformada.

O segundo tema que menciono mais brevemente é a maneira cristã de viver. O calvinismo e a doutrina jansenista têm em comum a preocupação com a recusa da conveniência, o ajustamento e o compromisso com a moral, ou a falta de ética do mundo, e desenvolvem uma ética bastante austera, legalista e puritana. No entanto, eles não o fazem da mesma maneira. O jansenismo favorece uma ruptura, retirada, isolamento; os religiosos e solitários se separam, rompem com o mundo, e o que devem fazer os cristãos. O calvinismo defende, pelo contrário, o que Max Weber*, chamava de "ascese laica". O cristão é chamado a permanecer ali, no mundo, a trabalhar mantendo certa distância, mas com a presença que marca uma diferença; ele “usa o mundo como se não fosse do mundo” para parafrasear uma fórmula paulina. Acumularam riqueza, sem desfrutá-la. O resultado é um comportamento social muito diferente.



Tenho consciência que ao apresentar este esboço não fiz mais do que recordar coisas bem conhecidas e me detive em generalidades. Trata-se apenas de uma introdução, banal e despretensiosa como todas as entradas de matéria. Espero que o nosso colóquio possa permitir precisar, retificar, aprofundar qualquer coisa que talvez possa abrir novas perspectivas.

André Gounelle

Chroniques de Port-Royal, 1998, Port-Royal et les Protestants

Notes :

* "Que signifie essence du christianisme" ?" dans Œuvres, vol.3, Cerf et Labor et Fides, 1996.

* Institution chrétienne, Labor et fides, l. l, ch. 4 et 5.

* Institution, l.1, ch.7, § 4 et 5

* Augustinus, l. 2, ch. 7.

* Cf. G. Bédouelle et B. Roussel, Le temps des Réformes et la Bible, Beauchesne, p.311.

* Voir M. Réveillaud, "L'autorité de la tradition chez Calvin", Revue Réformée, 1958, n°34.

* Quatrième session de 1546; traduction de G.Dumeige, La foi catholique, l'Orante, p.82.

* Confessions et catéchismes de la foi réformée, Labor et fides, p.116.

* cité d'après P. Maury, "L'unité de l'Eglise au XVI° siècle et aujourd'hui", Foi et vie, mars-avril 1959.

* M. Luther, Œuvres, Labor et Fides, vol. 2, p.205.

* P.Mélanchthon, Apologie de la Confession d'Augsbourg, § 143, in A. Birmelé et M. Lienhard (éd.), La foi des Eglises luthériennes, Cerf, Labor et Fides, p.135. Cf. J. Calvin, Consensus Tigurinus, art 3, in Calvin homme d'Eglise, Labor, p. 134.

* Cf. L'éthique protestante et l'esprit du capitalisme, Presses pocket, p.92.