quinta-feira, 9 de julho de 2009

SERIA BLASFEMO INVOCAR O NOME DE DEUS PARA ATRIBUIR À SUA VONTADE A DOR DESTA TRAGÉDIA?


Dias atrás, como sempre faço, compareci à reunião do grupo de estudo Liderança Cristã, aqui em Brasília, e, com muito interesse e grande satisfação, presenciei uma belíssima palestra com o tema "Paulo: Apóstolo do Cristo Ressuscitado", trazida pelo nosso irmão e amigo Professor Francisco Salatiel. Trata-se de excelente exegeta bíblico com formação inclusive em Roma, logicamente da quota dos católicos do grupo inter-confessional que tenho privilégio de fazer parte desde 1996. Acrescento um dentre muitos predicados pessoais, a sua experiência pastoral como sacerdote por importante tempo de sua vida, a partir do que se permitiu "retirar-se" para constituir família abençoada. Experiência igualmente rica compartilhada com uma rede de amigos pessoais seus, alguns, poucos, comuns, conhecida como "movimento ou comunidade padres casados".


A sua sobredita palestra, seguiu o fio condutor que perpassava pela contemplação da "visão secularizada de mundo", em voga nos dias de hoje contrastada com a do "mundo mediterrâneo" do 1° Século A.D., donde se discerne o pano de pano para o esposamento por parte de Paulo de idéias marcadas pelo estoicismo de Sêneca, de um lado, por sua condição de cidadão do Império Romano, e, por outro lado, pela visão apocalíptica judaica dada à de fariseu.


Nessa linha, não incidentalmente, traçou-se com maestria o "perfil do Apóstolo em coerência com as linhas fundamentais de sua pregação". Por conseguinte, destacam-se os traços marcantes na vida de Paulo. A sua experiência com o Senhor Ressurreto. A idéia paulina de que "a força da graça" se "realiza" ante a fraqueza humana. A visão ministerial do Apóstolo de "não dominar e destruir, mas edificar". O seu desprendimento em "pregar gratuitamente o Evangelho... se sustentando com o trabalho de suas mãos". E, por fim, a sua imitação de Cristo em carregar no seu próprio corpo a morte de Jesus.


A partir desses traços, indica-se como núcleo de sua teologia o poder que emana da experiência da Morte e da Ressurreição, cuja síntese seria, ao meu ver, a pregação do "Cristo e este crucificado".


Encerra dizendo que o mais importante em Paulo não era o pensar e falar mas o "ser em Cristo", ser uma "nova criação", coisa de gente adulta e responsável que se envolve no compromisso de "construir" um "mundo novo" pelo "poder do Esprito derramado em nossos corações (Rom. 5,5)".


Como se vê absolutamente tudo gratificante e de supino edificante.


Nessa altura alude à "realidade brutal e às vezes trágica da morte". Isso porque inicialmente dizia "parto de um acontecimento trágico que nos abalou a todos... o desaparecimento do vôo 447, da Air France na águas do Atlântico", com a perda de 228 vidas.


"Porque partir desse fato para a nossa meditação de hoje? É que precisamente nessas ocasiões, em que vida e morte se tocam, afloram nossa visão de mundo, nosso modo de pensar e sentir a existência. Perscrutar a fundo nossas crenças e convicções de leitores hoje dos textos paulinos possibilita-nos, sem dúvida, a atitude de escuta e abertura, para que não sejamos meros ouvintes, mas atores e praticantes da Palavra de Deus (Tgo 1,22)".


Agora sou eu quem falo. Não entendo por que certas pessoas dizerem não ver propósito nessas ocorrências brutalmente trágicas. Questiono se diante de apenas trivialidades, previsibilidades e de conseqüências normais ou comuns é aflorado o que se aflora na mente dos reles mortais? Será que diante do comum qualquer homem ou mulher pode-se ver como é em sua condição de mortalidade de fato reles?


A pergunta que ainda ecoa, porque com freqüência nos entristecemos ante essa realidade? Por que não respiramos mais "a atmosfera paulina de entusiastas convidados a entrar no cotejo triunfal" de I Tess. 4:17? "São tantos e tão momentosos os porquês que talvez seja a melhor resposta o silêncio aberto à escuta do que o Senhor pode nos ensinar ainda hoje...".


O silêncio cauteloso dos pobres mortais é importante, uma vez que o incidente, que parece inicialmente denotar a atitude de o homem transferir a sua responsabilidade pela tomada de decisão e correção de rumos para a tecnologia, nos faz sermos conduzidos à uma profunda reflexão com respeito aos novos parâmetros que vem sendo propostos pela ecologia holistica, em citação a Boff, L. em seu livro Ethos Mundial, Letraviva, Brasília/DF - 2000. Tai um propósito por demais nobre. Seguimo-lo.


Tais novos parâmetros ou conceitos "provocam governos e organizações civis para uma tomada de posição mais responsável e de respeito à natureza, com o objetivo de relativizar a hegemonia da mão invisível do mercado e da razão instrumental entronizados quais novos deuses".


Nesse sentido, é importante acompanhar o raciocínio compungido pela tragédia que o leva a questionar sabiamente a “visão secularizada do mundo”. O que levar a tragédias, ou pouco pode adiantar no sentido de evitá-las. Entretanto, a "a tecnologia criada pelo homem não esconde seus propósitos de sobrepujar e domesticar as forças da natureza. E quando isso não acontece num vôo transatlântico como o da Air France acidentado, volta-se para a máquina quase autônoma que falhou, para tantos e tão sofisticados instrumentos que não estavam mais sob o controle humano, a não ser indiretamente na automação gerada pela informática".


O pressuposto seria de que esse incidente e semelhantes têm causação imediata na falha do sistema de monitoramento e de imediata correção de rumos. Dos controles. Também acho que quem detém o controle pode até garantir com largo grau de probabilidade de que controlará (‘kiberneterá’!) no sentido de que a nave chegará ao seu destino e todas as vicissitudes intervenientes poderão ser dominadas. Para tanto haja todo o cabedal de conhecimentos e instrumentos à disposição do piloto. E para o auxilio deste, haja todos os cálculos, os mais meticulosos e complexos, são realizados instanteneamente. Hajam relatórios expedidos visualmente por telas de cristal líquido a contemplarem alternativas de solução. Haja o cálculo da melhor alternativa, ponderados os fatores ponderáveis, conhecidos e até desconhecidos. Por conseqüência falha o homem mas não haverá de falhar a máquina, e o pensamento imediato entrega ao chamado piloto automático e deixa acontecer o que acontecerá. Lasser faire, lasser passer. Perfeita a conexão entre a idéia da mão invisível do mercado e a razão instrumental. O que poderia dar errado? O homem acumulou tanto conhecimento, sistematizou tanto conhecimento e sobre os quais formulou tantos modelos, o que ainda poderá sair errado?


Ocorre que o homem ainda não inventou a máquina capaz de ao seu feitio ponderar o imponderável. Mas, para isso não precisa de máquina. O homem pondera o imponderável, e o deve fazer pela máquina. E ele o faz. Tai as suas preocupações, angústias, ansiedade, medos paralisantes, alguns até injustificáveis, e outros injustificáveis até que fatos supervenientes e inesperados para os outros acontecem.


Para quem crê, há um Deus imortal que também pondera o imponderável, para o mortal. Portanto, diante dessa demonstração de temeridade que é o homem desobrigar-se, negligenciar-se em função da máquina, esperava-se repor o lugar de Deus como pelo menos de espectador desses incidentes. E há quem o coloca como agente.


O irmão não o retira expressamente do papel de simples espectador no momento presente dos fatos. Coerente com os pensamentos de Suarez e Molina e corroborado com o de Armínio, eminentes teólogos cristãos, terá que admitir que Deus sabia antecipadamente o que viria acontecer. Mais do que isso, Ele teria todo o poder de evitar e não o fez por algum propósito escondido na impenetrável mente de Deus. Perder-se-ia a consolação saber que Deus sabe, vê, escuta e sente e deixa acontecer, não interfere, pois há um plano maior a ser seguido?


Esse pensamento diverge do de Agostinho corroborado com o de Calvino. Além de concordarem com o fato de que Deus sabe, ouve, vê e sente até antecipadamente todas as coisas, “desde toda eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou, livre e inalteravelmente, tudo quanto acontece; porém, de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias antes estabelecidas”. Além disso, “pela sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre e imutável conselho da sua própria vontade, Deus, grande Criador de todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a maior até a menor.”


Nesse caso, esta teologia faz de Deus um ator, um agente em meios às tragédias humanas e de fato, como bem lembrou o palestrante, isso aproxima do estoicismo, desenvolvido na época helenista, que teve em Sêneca uma das melhores expressões latinas, de que deriva a "convicção de que o homem faz parte de um todo, em que tudo está conectado e unido por uma ordem providencial. Cita-se Sêneca, “A providência comanda o universo e um deus se preocupa conosco”. E como bem observou o palestrante algo muito semelhante povoava a mente de Paulo quando, inclusive, dizia “Pois sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles amam a Deus, a quem ele chamou de acordo com o seu plano” – Rom 8,28.


Daí por que algo soou um pouco estranho quando ouvi “seria blasfemo invocar o nome de Deus para atribuir à sua vontade a dor desta tragédia, como falar em milagre para os poucos que se salvaram por não terem partido. Na verdade, tudo se concentra no terra a terra, ou melhor no ar e mar das causas e efeitos imanentes às ações humanas e aos fenômenos naturais. É bem possível que no intimo dos familiares das 228 vitimas, tocados pelas preces particulares e publicas (na Candelária do Rio e em Notre Dame de Paris) o nome de Deus e de seu filho, Jesus Cristo tenha sido invocado não em vão, mas com a fé dos justos, reunidos na assembléia dos santos.”


Confesso que a palavra unívoca blasfemo me soou mais profundamente do que a expressão que me pareceu equivoca “tudo se concentra”. Ele quis dizer que todos os fatores se concentraram no terra a terra, no ar e mar, nas ações humanas e evitou qualificar esses fatores de determinantes e por isso confesso ter entendido que “tudo consiste”, tudo se resume, as fatores terreais ou aéreos e não afetam a esfera da morada de Deus.


Há, porém, quem extrapola esse pensamento. Entendem que por um momento se estivesse alijando de Deus de sua onipotência e onisciência e se admitindo que há coisas e causas que por inexistentes em determinado momento são indeterminadas e não são cogitadas por Deus, e que tudo acontece sem propósito algum. E Deus? Bem, de uma forma ou de outra temos que preservar em nossos pensamentos a santidade, a perfeição moral de Deus e por isso seria impensável que de alguma forma Deus pudesse pensar em algum mal para quem quer que seja e assim por algum motivo não puder envidar esforços pra evitá-lo.


De certo que esse pensamento moderno está em conflito com o de Paulo Apóstolo, não faz jus ao ensino da Escritura.


Então voltamos à pergunta: seria mesmo “blasfemo” invocar o nome de Deus para atribuir à sua vontade a dor desta tragédia, como falar em milagre para os poucos que se salvaram por não terem partido?


Bem, de qualquer sorte sai da reunião com o ensino de que temos mesmo que nos comedir em nossas declarações acerca das tragédias que nos assolam.

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